Artigo de Francisco Ferraz*
É forçoso
reconhecer que o Príncipe, e o pensamento político de Maquiavel, não apenas
possuem vigência e atualidade no Brasil como, em todos os países e ao longo de
todo este período de 500 anos.
Há, pois
algo de radicalmente válido no pensamento de Maquiavel que lhe conferiu a
capacidade de navegar ao longo do oceano dos séculos, sem jamais ser
considerado obsoleto, historicamente condicionado e portanto, superado.
Talvez
esse algo de radicalmente válido possa ser descrito como o comportamento humano
em situações de ausência de normas regulando o comportamento dos cidadãos, ou
de ambivalência, fragilidade e ilegitimidade das normas existentes. Em
situações como essas, os desonestos, os poderosos, os violentos, os ousados
instauram uma dinâmica de poder a qualquer custo, da riqueza e do prestígio por
todos os meios e do interesse pessoal acima de qualquer outro.
O
argumento central da teoria política de Maquiavel, que significou um rompimento
com o pensamento cristão ortodoxo da “Grande corrente do ser”, é a falta de
articulação, coerência e hierarquia entre as diferentes dimensões da existência
humana.
Para ele,
não existe um conjunto de virtudes igualmente válidas para todas as esferas da
vida (família, sociedade, política, economia etc). Em outras palavras, o que é
virtude numa esfera pode não ser virtude em outra.
Não foi
Maquiavel quem criou esta “armadilha existencial”, por meio da qual uma virtude
pessoal pode transformar-se em malefício público e inversamente, um malefício
público pode se tornar numa virtude privada. Esta, segundo ele, é a real
condição da natureza humana. Esta é a realidade da vida – não a vida que
desejaríamos, mas a vida como ela é, e Maquiavel dedica-se a explicar a
política apenas e exclusivamente na vida real.
A
economia visa a riqueza; a política visa o poder; a família visa a
sobrevivência; a religião visa a salvação em outra vida; a vida social visa o
prestígio e admiração. Ao buscar o objetivo próprio de uma dessas esferas o
indivíduo se afasta do objetivo próprio de outra. Assim, ao procurar dar à sua
vida um objetivo ético o indivíduo é absolutamente fiel à palavra empenhada. Ao
transferir este objetivo para a vida política, ele vai prejudicar seu
principado pois seus rivais não hesitarão em não manter a palavra que
empenharam.
“Por
isso, um governante prudente não deve manter sua palavra, quando fazê-lo for
contra o seu interesse e, quando as razões que o fizeram comprometê-la não mais
existirem. Se os homens fossem bons, este preceito seria errado e condenável,
mas, como eles são maus e não honrarão as suas palavras com você, você também
não está obrigado a manter a sua para com eles.” (Maquiavel – O Príncipe Cap.
XVIII)
Tornava-se
assim impossível para Maquiavel a existência de uma mesma ética, aplicável com
igual validade, à esfera familiar e à esfera política. Cada uma delas tem uma
lógica própria. O que é benefício numa pode ou não ser benefício em outra. Na
política fundamentalmente, a disjuntiva ocorre entre vida privada e vida
pública.
O cidadão
comum continua cultivando os valores da vida privada, acreditando que devam ser
os mesmos para regular a vida pública, enquanto o político e o governante são
forçados a administrar aquela inevitável contradição.
É nessa
diferença que reside a ambiguidade da política para o cidadão comum, e a sua
tendência de encará-la de maneira negativa e pejorativa.
A
atualidade de Maquiavel e a aplicabilidade de suas ideias, recomendações e
advertências, depende então do grau em que um sistema político logrou
subordinar a articulação dos interesses e a competição pelo poder a regras legais
válidas, legítimas e executáveis que, ao estabelecer limites ao conflito,
assegurem a civilidade política. Em outras palavras, um sistema em que quem
governa são as leis e não os indivíduos.
Ao longo da história ocidental, o estado de direito e a democracia
contêm as instituições mais avançadas para a promoção e defesa da liberdade,
para a moderação dos conflitos e para a preservação da civilidade nas relações
sociais.
*Francisco Ferraz é professor de Ciência Política da UFRGS e diretor-presidente do site Política para Políticos: www.politicaparapoliticos.com.br
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